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EMOÇÃO: FENÔMENO NO CORPO

17/01/2014 13:01

 

                        Mesmo que seja verdadeiro que o aprendizado e a cultura alterem a expressão das emoções no Homem e lhes confiram novos significados, as emoções são fenômenos determinados biologicamente, dependem de mecanismos mentais estabelecidos de modo inato e assentados em uma longa história evolutiva. Os mecanismos que resultam nas emoções são acionados automaticamente, sem reflexão consciente. A variação individual considerável e o fato que as culturas têm um papel na configuração de alguns indutores de emoções, não impedem que elas tenham uma natureza fundamentalmente idêntica em todos os povos e se desencadeiem de modo automático. Por exemplo, o medo que um haitiano crente no vodu sente ao deparar-se com um boneco atravessado por um estilete que lembre a sua aparência (e que não traria qualquer reação emocional num classe média brasileiro) é o mesmo que este sentiria se receber pelo correio um envelope de papel contendo uma intimação da Receita Federal. Nos dois casos, a cultura apenas determinou o objeto emocionalmente competente.

 

                        As emoções se estabelecem no nosso corpo como posseiras e ao self –

totalidade do nosso Eu – se impõe o mesmo dilema que o mortal perante a esfinge – “Decifra-me ou te devoro”. Ao self só resta compreendê-las e tirar delas o melhor proveito. Àquelas que nos fazem sofrer, procurar o melhor meio de atenuá-las e às boas, gozá-las. Não adianta tentar modificar uma emoção por meio da simples vontade, será necessário um trabalho contínuo que abordaremos futuramente.

 

                        A compreensão que as emoções alteram profundamente o funcionamento do corpo é condição para que a pessoa possa compreender-se e guiar-se no emaranhado de suposições que passa a fazer quando está emocionado negativamente, ou mesmo positivamente. As emoções usam todo o corpo como teatro, desde os músculos esqueléticos, como também as vísceras, em particular o coração, o tubo digestivo e também a pele. O meio interno, os hormônios e inúmeros circuitos cerebrais estão modificados. A pessoa, no caso das emoções que se estendem no tempo, se sente profundamente modificada e, basicamente, vai atribuir o que sente às alterações de mau funcionamento do próprio corpo, ou melhor, sua suposição inicial a maioria das vezes, é que ficou doente. Por mais que a Psicologia, a Psicanálise, tenham mostrado a importância da mente nos processos corporais ou somáticos, e até se tenha postulado uma nova ciência – a Medicina Psicossomática – na verdade, não é assim que a banda toca.

 

                        Descartes subscreveu, em 1637, que corpo é corpo e alma é alma. Pensamento que domina o establishment médico até nossos dias. Se o médico não encontra um substrato material – vale dizer, uma infecção, um tumor ou uma oclusão no fluxo de alguma coisa no seu corpo – você vai ser, discretamente, reclassificado de paciente para píssico e redirecionado a um psiquiatra, psicólogo ou psicanalista, isto é, para um outro departamento para tratar de uma coisa menos substancial, que é a mente.

 

                        Descartes fez uma separação radical entre corpo e mente, entre a substância corporal infinitamente divisível, que ocupa lugar no espaço, tem peso e que é claro, sai nas radiografias, tomografias, ressonâncias e podem ser medidas em suas menores ou maiores concentrações nos líquidos corporais através de exames; e, a substância mental, que não ocupa lugar no espaço, não é divisível e, portanto, não deixa suas pegadas nos exames. Vejamos as palavras de Descartes: -

... “Por isto, eu soube que era uma substância cuja essência integral é pensar, que não havia necessidade de um lugar para a existência desta substância e que ela não depende de algo material. Então, esse Eu, quer dizer a alma por meio da qual sou o que sou, distingue-se completamente e é ainda mais fácil de conhecer do que este último; e ainda que não houvesse corpo, a alma não deixaria de ser o que é.”

 

                        A idéia de uma mente desencarnada moldou, também, a forma peculiar como a medicina ocidental aborda  o estudo e o tratamento das doenças. É até curioso concluir o quanto Descartes contribuiu para a alteração do rumo da Medicina, vale dizer, como o Homem ocidental encara a doença, ajudando-o a abandonar a abordagem orgânica da mente no corpo que predominou desde Hipócrates até o Renascimento.  Até aí, as doenças, inclusive as mentais, eram provenientes do desequilíbrio entre os humores corporais. Melancolia, por exemplo, era o excesso da bile negra no organismo.

 

                        Se você está negativamente emocionado seu corpo, também, está negativamente regulado. Se você está passando por um estresse na sua vida, todo o seu corpo está sofrendo um reajuste em seus parâmetros regulatórios. A pressão doze por oito e o pulso próximo de setenta são parâmetros de um indivíduo tranqüilo e em repouso. Basta o telefone tocar e estes números não valem mais. Se você toma um susto, a regulagem é outra. As situações de estresse se parecem a um susto atrás do outro. Basta isso para sua pressão ficar em dezessete ou dezoito e seu pulso aproximar-se de cem que, pode perfeitamente, deixar você muito preocupado com seu coração que, neste caso, está funcionando muito bem.

OS CIRCUITOS EMOCIONAIS

17/01/2014 12:53

 

 

                        Sabe-se que os fatos importantes da nossa vida ficam impressos em circuitos especiais que temos na mente – os chamados circuitos emocionais e que fazem parte destes circuitos, duas notáveis formações chamadas amídalas cerebrais, que disparam um alarme para todo o corpo se mobilizar quando reconhece qualquer coisa semelhante a um fato anterior marcante. As amídalas funcionam como sentinelas da mente em permanente atalaia e apertam o botão de alarme quando vêem qualquer sinal de perigo. Nos casos de neurose traumática que agora são chamadas de estresse pós-traumático, a sensibilidade das amídalas é afetada e elas passam a disparar, incessantemente, a qualquer coisa, pondo o sujeito em alarme permanente como se o fato gerador não tivesse cessado.

 

                        E o que acontece com a pessoa quando o alarme das amídalas dispara, mesmo que suavemente? O resultado é a emoção. No conceito mais moderno, diferenciamos emoção de sentimento. Mas agora falaremos só de emoção. É um conceito cujo significado preciso psicólogos e filósofos discutem há séculos. Quando se recorre ao dicionário pouco nos adianta, ou até nos confunde. Por exemplo, o prestigiado Oxford English Dictionary diz o seguinte sobre a emoção: - “qualquer agitação ou perturbação da mente, sentimento, paixão ...”. Para este dicionário emoção, sentimento e paixão são sinônimos.

 

                        Quem melhor define, atualmente, emoção é o neurocientista português radicado nos Estados Unidos Antonio Damásio. Para Damásio, a emoção é um fenômeno de terceira pessoa porque se passa no teatro do corpo e pode ser percebido pelo outro. As emoções são regulações automáticas de todo o corpo como a alegria, a tristeza, a raiva, o medo, a vergonha, a simpatia. As reações básicas emocionais, como rir, chorar e soluçar, estão prontas na mente e se expressam corporalmente já desde o nascimento. Basta, para isso, que haja um estímulo (denominado estímulo emocional competente). Quando um objeto, no sentido da Psicologia, ou acontecimento, cuja presença real desencadeia a emoção (após ser reconhecido pelos sentidos) o resultado imediato é a resposta emocional que contem uma alteração temporária no estado do corpo e do estado das estruturas cerebrais que mapeiam o corpo e sustentam o pensamento. É preciso frisar que nós temos estruturas cerebrais para mapear o corpo. Qualquer um de nós pode perscrutar detalhadamente o próprio corpo. Mesmo de olhos fechados é possível saber a posição e o estado confortável ou desconfortável de toda a superfície e também de alguns órgãos internos.

 

                        E por que nós temos emoções? Até a classe dos répteis à resposta aos estímulos, mesmo os desagradáveis, é idêntica. Estes animais aprendem muito pouco com a experiência. Com o aparecimento dos mamíferos a mente foi reforçada pelos circuitos emocionais que dispõem de uma memória e são capazes de determinar um aprendizado. Se um mamífero se dá mal numa experiência, ou pelo contrário, se deu muito bem, em situações semelhantes, os elementos deste evento são reconhecidos e se transformam em um estímulo emocional competente que faz as amídalas cerebrais dispararem e adaptam o cérebro e o corpo para reagir adequadamente. Por exemplo, ao sentir o odor de uma fêmea no cio, todo o corpo passa a agir em função do acasalamento. Quem já viu um cão reagindo a uma cadela no cio sabe que profundas modificações aparecem de imediato. Se o odor for de um predador muito mais poderoso, que já o atacou, a reação corporal imediata será: pernas para que vos quero.

 

                        Diremos, então, que as emoções são o meio natural de avaliar o ambiente que nos rodeia e que nos possibilitam reagir de uma forma adaptativa. Há cento e cinqüenta mil anos passados, apareceu no sudeste da África uma nova espécie que em breve iria empolgar todo o planeta. Ela assentou sobre os circuitos emocionais uma enorme concentração de neurônios numa capa, ou cortiça, que envolve todo o cérebro. Esta capa é chamada córtex cerebral e veio modificar, fundamentalmente, as reações emocionais. Os humanos têm reações emocionais muito mais complexas.

 

                        Podemos distinguir, no Homem, três tipos de emoção, a saber, as de fundo, as primárias e as emoções sociais. As emoções de fundo não são especialmente proeminentes, apesar de notavelmente importantes. A pessoa atenta pode, rapidamente, perceber a energia ou o entusiasmo de alguém que acaba de conhecer. Ou, então, o mal-estar e ansiedade quase sempre presente num velho conhecido. As pessoas intuitivas são capazes de fazer este diagnóstico sem ouvir sequer uma palavra do outro. São os bons leitores das emoções de fundo dos outros. O conhecimento da emoção de fundo depende de se perceber manifestações sutis, como o tipo de movimentação dos membros, ou do corpo inteiro e, fundamentalmente, das expressões faciais. Quanto ao que dizem, no mais das vezes, o mais importante não são as palavras propriamente ditas, mas a música da voz, a cadência do discurso. Enfim, a prosódia, na definição dos nossos professores do Português.

 

As emoções primárias são mais fáceis de definir porque há uma tradição em relação as que devem fazer parte deste grupo. São seis: o medo, a raiva, o nojo, a surpresa, a tristeza e a felicidade. Elas são facilmente detectadas no ser humano e presentes em todos os povos e em todas as culturas.

O INSTINTO DE MORTE (II)

17/01/2014 12:46

 

                       Freud foi sempre ambivalente em relação à Filosofia e aos filósofos. Em certos momentos menosprezava a Filosofia por sua falta de metodologia científica. Em outros, lamentava não se ter instalado na pura especulação filosófica e via sua carreira como médico como um desvio ou um erro de direção que o deixou longe de sua verdadeira vocação: o de lebenphilosoph, isto é, filósofo da vida – um explorador da essência do Homem.

 

                        Fica claro, para mim, que ao afirmar que: “a vida nada mais é que a manifestação do conflito, ou interação, entre duas classes de instinto: o de vida, ou Eros e o de morte, ou Tanatos”Freud usa uma típica afirmação da Filosofia e bem dentro do espírito dos pré-socráticos que, aliás, ele conhecia muito bem.

 

                        Thales de Mileto (circa 400 a.c.), considerado o fundador da Filosofia Ocidental, apesar de termos dele só a tradição oral, foi o primeiro homem conhecido, a fazer um pronunciamento científico-filosófico sobre o mundo. –“Tudo é feito de uma única substância”, disse Thales de Mileto. Para ele, na coreografia de criação e destruição que caracteriza o mundo natural, tudo o que existe vem de uma matéria única e para ela reverte. A substância que compõe todas as coisas, para Thales, é a água que pode se transformar e se adaptar sem jamais perder sua identidade. Toda matéria do mundo seria feita dela, de variações da água.

 

                        Os seguidores de Thales continuaram a defender a noção chave, : a existência de uma unidade material por trás das diversidades das coisas. O grupo de Thales é conhecido como os Iônicos e o historiador Berlin chama de ‘encantamento iônico’a busca pela unidade de todas as coisas. O pensamento que durou até a Renascença foi o defendido por Aristóteles, em que todo o mundo abaixo da lua fosse composto das quatro substâncias fundamentais – terra, água, ar e fogo, exceto as esferas celestes acima da lua que eram feitas de uma quinta essência, o éter, a quintessência.

O INSTINTO DE MORTE

17/01/2014 12:44

 

                        Em 1920, Freud introduziu no meio científico o conceito de Instinto de Morte para explicar, entre outras coisas, porque os indivíduos que sofrem um poderoso trauma se fixam neles, relembram o acontecido sem cessar e até sonham, repetidamente, com as cenas que o traumatizaram. Do Instinto de Morte surgiriam todos os aspectos destrutivos do Homem. As vezes, só admitindo que os humanos tenham uma fascinação pela morte (tanatofilia) podemos compreender muitos comportamentos de certas criaturas. Um fato recente,  que chocou a todos nós, aí se enquadra: o pedreiro Adimar Jesus da Silva matou a pauladas seis adolescentes após ter abusado sexualmente deles. Por mais estranha que possa ser a cabeça do Adimar para nós, o fato não é único, longe disso, a mídia volta e meia nos brinda com casos semelhantes e até mais violentos.

 

                        Não é difícil encontrarmos, em diversos graus, um desejo latente, ou manifesto pela Morte em indivíduos neuróticos, depressivos, psicóticos e, sobretudo, nos perversos e psicopatas. A hipótese de Freud que o Homem tem, instintivamente em sua psique uma obsessão de repetição proveniente do instinto de morte, fica robustecida com a descrição do que aconteceu na Escola Primária Cleveland em Stockcon, Califórnia.

 

                        No dia 17 de fevereiro, na hora do recreio, o ex-aluno Patrick Purdy entrou no pátio e disparou rajadas e mais rajadas de balas 7,2 mm. de uma arma automática sobre centenas de crianças que ali brincavam. Durante sete minutos Purdy atirou nelas e nos funcionários que também ali estavam, depois sacou uma outra arma, uma pistola, e suicidou-se. Deixou o saldo de cinco crianças mortas e vinte e nove gravemente feridas.

 

                        O psicológo Daniel Goleman, que visitou a escola cinco meses depois da tragédia, descreve um jogo que apareceu espontaneamente nas brincadeiras dos meninos e meninas e que revela um dos muitos sinais que aqueles sete minutos ficaram marcados para sempre nas cabeças das crianças. Muitas pediram a seus pais que lhes comprassem miniaturas das metralhadoras AK.47 para participarem do Purdy – o nome do assassino e da brincadeira. Nela, o vilão usa esta metralhadora para massacrar um grupo de crianças e depois   dispara   contra    si mesmo. Uma repetição daquilo que aconteceu. Há uma uma variante, às vezes são elas que o matam no final. Um fato tão traumatizante mas repetido assiduamente de maneira muito semelhante pelas crianças que viveram o drama. Elas deviam era querer esquecer mas não, a repetem meses e meses depois o acontecido.

 

                        Não foi só a brincadeira Purdy  que ficou de lembrança na escola. Todos exibiram sintomas de neurose traumática ou, como se diz agora, estresse pós-traumático. Conta o psicólogo Goleman que durante sua estada lá uma menina correu apavorada até a sala da diretora gritando –“Tiroteio, tiroteio, estou ouvindo tiros!” Na verdade, era uma corrente de ferro que, por causa do vento, batia num poste para jogos num poste no pátio de esportes.

 

                        Quase cem anos após o trabalho de Freud não falamos mais de neurose de guerra ou traumática, Instinto de Morte é um conceito evitado ou usado cautelosamente pelos psicanalistas. Vamos ver, agora, os aportes trazidos pela Neurociência e conhecimentos afins para explicar os sintomas subseqüentes aos traumas. Estes momentos vividos de terror tornam-se lembranças impressas nos circuitos emocionais e os sintomas são na verdade sinais de uma amídala super estimulada que não para de enviar as lembranças do fato traumático para a consciência. Para entendermos bem os fatos é preciso recordar o que é circuito emocional e o que é e qual é a importância das amídalas cerebrais. O entendimento disso e o que é uma emoção é  fundamental para compreendermos como funciona a mente de cada um de nós, não só nos traumas, mas também nos pequenos estresses do cotidiano.

 

                        Mas antes, vamos nos perguntar porque Freud, um dos marcos intelectuais do Século XX, procurou uma explicação tão vaga e discutível para os sintomas traumáticos e, também, para a tendência a repetir os acontecimentos nefastos que vemos em muitas pessoas que parecem sofrer de uma influência demoníaca regendo suas vidas, ou que estão sendo perseguidas por um destino inexorável de tanto que repetem suas desditas de modo idêntico.

 

                        Segundo Ernest Jones, o biógrafo que conviveu com Freud (era também psicanalista) havia diversos homens que Freud admirava fervorosamente e cujo patamar intelectual se julgava incapaz de alcançar. Neste grupo estava Goethe, Kant, Voltaire, Darwin, Schopenhauer e Nietzche. Freud chegou a reconhecer, explicitamente, que Schopenhauer e Nietzche haviam descrito e antecipado com exatidão a sua Teoria do Recalque. No meio da sua argumentação para validar o Instinto de Morte, Freud diz o seguinte: -“O que desde logo não podemos ocultarnos é que temos chegado inesperadamente ao “porto da filosofia” de Schopenhauer, pensador para o qual a morte é o verdadeiro resultado e, portanto, o objeto da vida e, em contrapartida, o instinto sexual é a encarnação da vontade de viver.”  Aqui, é evidente que Freud se refere ao Eros versus Tanatos.

 

                       

 

A TRANSFERÊNCIA (IV)

17/01/2014 12:40

                        O indivíduo, integrado na multidão, não tem plena consciência de seus atos. Como, no hipnotizado, ficam abolidas certas faculdades mentais e podem ser levadas outras a um grau extremo de exaltação. Sob a influência da sugestão, principalmente de um líder carismático, os membros de uma massa podem cometer barbaridades, como acontece nas torcidas organizadas, nos grupos de pitbulls das baladas e, até coisas mais assustadoras, como as matanças coletivas nos  pogrons na Rússia, onde os judeus eram massacrados. Os chipanzés também têm o seu equivalente ao pogron – um bando de jovens machos saem barbarizando pelas selvas, matando a esmo todos os macacos que possam, sejam chipanzés ou não.

 

                        Na raça humana há uma superestimação do líder sempre que ele se torna absoluto na posição. Em “Guerra e Paz”, de Tolstoi, o autor, com sua pena inspirada, descreve o sentimento de êxtase do membro pelo líder, no caso o  de Rostov pelo Czar. –“À medida que o imperador se acercava, parecia a Rostov como um sol que irradiava raios de luz suaves e majestosos. E, agora que se sentia envolto pelo seu brilho, ele ouviu a sua voz, uma voz carinhosa, calma, majestosa e, ao mesmo tempo, tão simples. Isto se passa nos memoráveis dias (para os russos) que precederam à batalha de Austerlitz (1805), onde Napoleão bateu os austríacos e russos coligados. Com certeza, os mesmos nove décimos – segundo Tolstoi – dos homens do exército russo que estavam apaixonados pelo Czar correspondiam aos franceses vivendo  fascínio idêntico pelo seu imperador. Parece que apaixonar-se pelo líder é um dos pré-requisitos para uma guerra. A ironia é que se matou tanto sob a égide do amor quanto a do ódio.

 

                        O aparecimento da alma coletiva é determinado porque o indivíduo integrado em uma multidão adquire um sentimento de potência invencível pela qual se permite ceder a instinto que antes, como indivíduo isolado, reprimia sempre. E o faz com prazer e gozo porque a multidão é anônima e, portanto, irresponsável.

                        Mas, a alma coletiva, na mesma velocidade que aparece, se desfaz. As multidões são instáveis em seus julgamentos e obedecem a critérios da parte mais primitiva da mente. O herói de agora pode ser o vilão em seguida. O fã que deifica o craque que fez o gol da vitória é o mesmo que o apedreja e o agride na derrota. A multidão se desfaz com as modificações do seu próprio humor. Nenhum homem suporta uma aproximação muito íntima com seu semelhante, ao menos por muito tempo e sem rancores. Quem melhor exemplificou isto foi Schopenhauer, na célebre parábola dos porcos espinhos.

 

                        -“Era um terrível dia de inverno. Os porcos espinhos de uma manada se apertavam uns contra os outros para desfrutarem do calor mútuo. Mas, ao fazê-lo desta maneira se feriram reciprocamente com seus espinhos e tiveram de separar-se. Obrigados, de novo, a juntarem-se por causa do frio, tornaram a se machucar e se distanciaram de novo. Estas alternativas de aproximação e distanciamento duraram até que lhes foi dado achar uma distância média na qual ambos os males foram minimizados.”

 

                        Todo observador realista sabe que em qualquer relação afetiva íntima de alguma duração entre duas pessoas, tipo casamento, sociedade comercial, amizade, relações parentais, relações filiais, deixam, também, um precipitado de sentimentos hostis. O mesmo fato se reproduz quando pessoas se reúnem para formar conjuntos mais amplos. Quando duas famílias se unem para um matrimônio, cada uma delas se considera a melhor e  mais distinta que a outra. Cidades vizinhas sempre são rivais. Os habitantes dos dois lados de um rio nunca se acertam. Rivais vem de rivum em Latim, que significa rio. Os grupos étnicos afins se repelem reciprocamente. O inglês deprecia o escocês, o espanhol o português, judeus e árabes se aniquilam há milênios. Os tutsis e os hutus de Uganda promoveram uma matança de mais de um milhão de indivíduos.

 

                        Nada melhor para um governante ou para um rei do que um inimigo externo ou um grupo rival. Seus conselheiros sabem que ele deve ser colocado, sempre, numa posição supra-humana, de semi-deus, para que o povo, como massa plástica, o obedeça cegamente. Os incas foram mestres nisto. Nas cerimônias, o seu soberano, também denominado inca, aparecia no alto, pairando sobre a massa apinhada embaixo. Os chineses da época imperial fizeram coisa semelhante, ao instituir a “cidade proibida”.

 

                        Para Freud, muitos dos sentimentos que o homem experimenta em relação ao seu líder são transferências de sentimentos iniciais que eram direcionados ao pai que, visto pelos olhos da criança, é um gigante todo poderoso que o protege de todos os males. A situação de impotência e necessidade de proteção da infância é revivida, muitas vezes, quando um povo se confronta com adversidades naturais ou com poderosos inimigos humanos. O líder inconteste se transforma, incontinenti, no pai da Pátria e muitos aceitam de bom grado o título. Franco, por exemplo, se dizia “caudilho de Espanha pela graça de Deus”. Hitler era “o Füher” e Mussolini “o Duce”.

A TRANSFERÊNCIA (III)

17/01/2014 12:35

                        A Transferência transcende o setting psicanalítico e não é exclusiva dele. As nossas figuras afetivas importantes, principalmente as do início de nossas vidas, povoam também os nossos objetos afetivos do presente, fazendo sombra neles e distorcendo suas reais características quando identificamos inconscientemente os nossos novos objetos (nossos amores e nossos desafetos atuais) com aqueles do passado.

 

            Nenhum relacionamento afetivo é inteiramente diferente. Só os primeiros foram, quando ainda havia espaço para as novidades. É o que acontecia na infância onde tudo era novidade. Por isso, ela é tão mais longa em nossa memória. Estivemos conhecendo o mundo, as pessoas e a nós mesmos. Cada novo conhecimento suscita, também, uma nova emoção que logo é vivida com um novo sentimento. É a quantidade de afeto investida ou despertada por um objeto o que alarga ou encurta a passagem do tempo no acervo das nossas memórias (vale dizer, na consciência).

 

                        A infância passa mais devagar porque vibramos, afetivamente, mais com as coisas novas que com as repetidas e as já conhecidas e esperadas. Na puberdade, de novo o tempo se alarga porque as nossas glândulas jorram hormônios que vão nos exigir novos prazeres e novos riscos. O afeto sentido é o que marca a passagem relativa do tempo. Quanto mais amor, mais ódio ou mais medo, tanto mais nitidez na nossa memória.

 

                        A pós-maturidade tende a fazer-nos repetir os eventos por conta de mais segurança e, por isto mesmo, o tempo passa rápido no tempo relativo da existência. As coisas repetidas não contam ou contam muito menos. Aí o tempo acelera. Se você quiser viver mais no sentido de maior tempo vivido, enriqueça a sua existência com coisas novas e vai por mais vida em seus anos e, provavelmente, também mais anos em sua vida.

 

                        O escritor e terapeuta Irvin Yalon diz que a Transferência pode ser reconhecida porque é a propensão a passarmos a nossa experiência para o outro de maneira irracional. Eu acrescento irracional e de maneira inconsciente, já que quando passamos a nossa experiência adquirida para um sucesso atual da nossa vida, isto não se constitui uma Transferência e sim uma estratégia e estamos empregando o que há de melhor em nossa mente racional. Nós podemos também usar uma memória inconsciente que, entretanto, como um iceberg, tem uma parte emersa. É o sentido da intuição que as mulheres reivindicam como apanágio do feminino. Se a intuição constitui-se em uma bússola para a navegação nos mares revoltos da existência, a experiência passada usada conscientemente é um GPS.

 

                        Muitas mulheres desempenham, nas famílias, o mesmo papel que a elefanta no seu clã. Os machos, geralmente dois ou três, são muito maiores do que ela e mais fortes e agressivos, principalmente quando estão numa espécie de cio, mas obedecem sem hesitação a liderança de uma matriarca na penúria e na seca. É ela que tem na memória a rota para a salvação do clã e o guia, sabiamente naquela marcha de centenas de quilômetros até onde há água e vegetação. Nas situações de penúria à vista, ou perigo, as famílias muitas vezes também recorrem à figura da matriarca para ganhar o seu norte e sair das tribulações em que se meteu o clã. Apesar da cisão narcísica que os homens fizeram entre animais racionais e irracionais, nem sempre os homens somos tão racionais como os elefantes, seguindo comportados a sua matriarca, e nem sempre os animais são tão irracionais como os fãs ou as torcidas organizadas.

 

                        Freud foi muito sensível à maneira irracional como os membros dos grupos humanos se comportam e como vêem seus líderes. Ele deu uma grande contribuição à Psicologia das massas ao analisar estes fenômenos sistematicamente. Em 1920, escreveu o trabalho “Psicologia das massas e análise do Eu” onde analisa, com maestria, as alterações que a alma humana sofre quando se integra numa coletividade. Podendo ser uma tribo, um povo, uma casta, uma classe social ou, até mesmo, uma instituição.

 

                        O indivíduo, quando se sente como elemento de uma multidão humana em um determinado momento e com uma determinada finalidade, sofre uma alteração profunda. Para Freud, não se pode negar que surge aí um estado de espírito, um instinto especial: a mente grupal (group mind) ou alma coletiva. Nesta situação especial, e pelo contato com os outros, os indivíduos se integram de uma maneira especial mesmo que os outros sejam bem diferentes em suas características.

 

                        Nós sabemos que um indivíduo pode ser levado a um estado em que perde a sua personalidade consciente e passa a obedecer a todas as sugestões de um operador, justamente o que o fez perder sua personalidade e passa a atuar perfazendo atos contrários aos seus costumes e ao seu caráter. Os indivíduos absorvidos pelos eflúvios da mente coletiva, ou group mind, caem num estado particular muito semelhante ao estado de fascinação do hipnotizado quando sujeito ao hipnotizador. Que, paralisada a sua vida mental consciente, se converte num escravo de todas as suas atividades inconscientes que o hipnotizador dirige à seu prazer.

A TRANSFERÊNCIA (II)

17/01/2014 12:30

 

                        Freud sempre se mostrou imune às declarações amorosas das suas clientes e também não se envaideceu de ser o centro dos afetos das clientes. Interpretou estes amores (amor de transferência) em seus trabalhos como sendo transferências afetivas. – “A paixão revelada – seja amor ou ódio – toma sempre como objeto a pessoa do médico. Assim, ser caluniado e chamuscado no fogo do amor com o qual operamos são o risco da profissão.”

 

                        Nem só de amor é composta a Transferência, todos os tipos de sentimentos podem ser transferidos, inclusive o ódio, é claro, o que se chama de Transferência Negativa. No início, a Transferência foi vista como um empecilho, uma reação adversa ou colateral da Análise. A amorosa obrigava, se resistisse às interpretações, o correto terapeuta à suspensão imediata do tratamento. A negativa também. É impossível analisar alguém que o detesta. Mas em breve foi possível compreender que a Transferência é intrínseca ao processo analítico e, necessariamente, vai aparecer nos neuróticos no decorrer da análise.

 

                        Como o setting analítico é, ou deveria ser, asséptico e esterilizado, uma ilha isolada na vida do paciente, se a Transferência aparecer, era de pronto identificada. O analista não deve encontrar o paciente em outros cenários, em situações diferentes ou diferentes locais. Não deve ter relacionamento mais íntimo com amigos ou parentes dos clientes. Os encontros devem ter só a finalidade terapêutica. São vedados outros interesses. O analista deve postar-se receptivo à fala do analisando, mas neutro em relação as suas escolhas existenciais. É preferível uma postura sempre idêntica em todas as sessões. Alguns até sugeriram que o analista usasse sempre o mesmo tipo de roupa. Todas estas precauções levam a evidenciar as alterações da maneira com que o analisando sente o seu terapeuta.

 

          Vejamos, para exemplificar, uma situação típica de análise: o paciente entra, é cumprimentado e deita-se no divã. Fica em silêncio. Alguns minutos depois, fala o seguinte: - “Você nem me cumprimentou direito hoje. Apesar de estar com uma cara de satisfeito.” Segue-se um outro silêncio. Em seguida, o cliente diz num tom crítico: -”Eu já notei que esta mulher que você atende antes de mim, sempre que acaba o tempo dela ela vai ao banheiro. Será que a sessão dela tem um bônus?”Segue-se outro silêncio. O analista, então, diz o seguinte: -” Você está insinuando que eu e ela, aqui dentro e com a porta fechada, estávamos transando enquanto você estava lá fora na sala de espera com a cabeça povoada de fantasias, mas também de ciúmes e de inveja. “Mesma situação que você vivia quando, excluído do quarto de seus pais, imaginava que trancados lá dentro desfrutavam um do outro.” De imediato, o paciente fala em tom de raiva: -“O senhor está é doido, não sei de onde tirou estas conclusões ridículas. Acho que estou jogando o meu dinheiro fora aqui.” Silêncio pesado. Depois de algum tempo, o analista disse o seguinte: -“A sua emoção indica que eu devo estar certo na minha colocação.”

 

                        O analisando esteve transferindo afetos e revivendo angústias do início da sua vida e, por isso também, possibilitando que a Análise promova a reorientação destes afetos. A reação transferencial evidencia resíduos conflitivos do analisando com seus objetos afetivos iniciais. Mas agora estão orientados transferecialmente para o analista e rememorá-los também implica em possibilitar sua resolução.

 

                        O analista, é claro, deve sempre poder ser continente para estes afetos, sejam eles negativos ou positivos, isto é, ser capaz de não reagir afetivamente a estas transferências com melindres ou agressões. Não deve ofender-se, quando é o caso, e nem também achar-se o Brad Pitt quando a reação for de amor de Transferência.

 

                        Paulatinamente, a Transferência foi deixando de ser considerada como resistência ao tratamento e passou a ser usada intensamente a favor do labor psicanalítico e, por fim, a análise da Transferência passou a ser a essência da cura psicanalítica. Uma interpretação completa contem, sempre, a formulação do que se passa na relação do analista com o analisando. Para uma corrente se deve criar, depois de algum tempo de tratamento, a neurose de Transferência, estado no qual a relação do paciente com o seu analista fica no proscênio de sua vida afetiva.

 

                        Alguns afetos que o analista experimenta durante as sessões são indicativos do que se passa naquele momento com o cliente. Por exemplo, irritação. Se o terapeuta fica irritado com o material trazido, ele deve estar embebido em um comportamento histérico. A atuação histérica geralmente causa irritação no espectador. Sono, se não há razões orgânicas para isto, é a reação contra-transferencial automática a conteúdos de morte. Coisa comum nos depressivos. Uma repentina e descabida atração física significa, provavelmente, uma tentativa de sedução por parte da cliente.

 

                        Toda atividade humana que se desenvolver com proximidade e intimidade e seja freqüente vai gerar, fatalmente, fenômenos transferências. A atuação do médico, do professor, do padre confessor, do pastor, do pai de santo, do guru, do fisioterapeuta, do personal trainning, do chefe, e assim por diante, são exemplos de atividades que geram fenômenos transferenciais facilmente.

A TRANSFERÊNCIA

17/01/2014 12:25

 

                        A transferência é uma reação fundamental da criatura humana e está sempre presente nas nossas atitudes do dia a dia. Apesar disto, este fenômeno só foi evidenciado no início do Século XX justamente por Freud. Ele viu claramente que, nas suas sessões muito freqüentes do método psicanalítico que aplicava em seus pacientes e, principalmente, com suas pacientes, eles traziam para a relação com o terapeuta coisas que estavam sendo transferidas do passado deles e de suas vivências infantis para o setting analítico. O método utilizado por ele exigia intimidade e freqüência com seus clientes. Os confessores da Idade Média tiveram, também, relacionamentos semelhantes com as beatas, mas não se tem notícia de relatos evidenciando o entendimento do fenômeno da transferência.

 

                        Em 1912 Freud escreveu um trabalho intitulado – “A dinâmica da transferência” e, em 1914, um outro chamado “Observações sobre o amor de transferência”, onde pôs o dedo nas delicadas relações eróticas relacionadas à cura psicanalítica. Uma definição técnica e restrita ao campo da Psicanálise de Transferência seria: processo inconsciente pelo qual características dos objetos afetivos (em geral, pessoas significativas do passado do paciente, geralmente familiares) são transferidos, deslocados e projetados para o analista.

 

                        Por exemplo, se o paciente – ou melhor, o analisando, vivenciou seu pai como crítico e rigoroso (o que não significa, necessariamente, que ele tenha sido) vai reagir às interpretações do seu analista como sendo críticas severas ou exigências draconianas a ele.

 

                        Em 1914, quando publicou o trabalho, Freud já tinha deixado de ser o neurólogo vienense (portanto, excêntrico ao mundo culto da Europa), o judeu obstinado que trabalhava solitário no método que ele mesmo descobrira e que falava muito em sexo se bem que, geralmente, em Latim. Ele já atendia na famosa Bergasse 19, onde também residia. Por essa época ele já era reconhecido em toda a Europa. Já tinha seguidores do seu método e a ele recorriam para deitar-se no seu famoso divã pacientes e candidatos a analistas de toda a Europa e até da América do Norte.

                       Freud atendia a seus pacientes em sessões de cinqüenta e cinco minutos (cinco ele tirava para si mesmo) seis vezes por semana, isto é, inclusive aos sábados. Aos domingos, como bom e acomodado burguês, podia ser visto, após o almoço, passeando no Prater com a família.

 

                       A reação transferencial pode ser maciça e ter no seu epicentro o “amor de transferência” o que motivou o trabalho de Freud de 1914. A transferência neste nível traz sérios obstáculos ao tratamento e abriu flancos para o ataque de seus opositores e criou má vontade por parte dos pais e maridos das pacientes. A Psicanálise se desenvolveu na Era Vitoriana e seu alvo preferencial foi as neuróticas histéricas, conjunto de mulheres reprimidas em todos os seus anseios inclusive, mas não só, os sexuais. As pessoas, isto é, também os homens, recalcavam todos os seus impulsos que não estivessem contidos dentro de uma moral rigorosa que exigia sentimentos puros e idealizados, em franco desacordo com a real condição humana. Não se aceitava qualquer deslize desta moral fictícia, nem em pensamento. A moral sexual então, principalmente para as mulheres, era um horror. Vejamos as palavras de Freud sobre o “Amor de Transferência”:

 

                       “... Não se demora em comprovar as dificuldades que surgem logo no manejo da transferência. Das diversas situações a que dá lugar esta fase da análise quero descrever, aqui, uma precisamente delimitada que merece especial atenção, tanto por sua freqüência e sua importância real, como por seu interesse teórico. Refiro-me ao caso em que uma paciente demonstre, com sinais inequívocos ou declare abertamente, haver-se enamorado, como outra mortal qualquer, do médico que a está analisando. Esta situação tem seu lado cômico e seu lado sério, inclusive penoso, e torna-se muito complicada, tão inevitável e tão difícil de resolver que sua discussão vem constituindo, faz muito tempo, uma necessidade vital da técnica psicanalítica...” Em seguida, Freud afirma que o amor de transferência não se deve aos atributos como objeto erótico irresistível do analista e sim a afetos pretéritos, levados agora de roldão, pela transferência à pessoa do analista. Depois, ele acrescenta: -“Uma vez interrompida a análise porque ela fica impossibilitada de prosseguir pelo amor de transferência, quase fatalmente esta paciente vai repetir o processo com outro analista”.

 

                        A Psicanálise começou com um grande caso de amor de transferência. Joseph Breuer, catorze anos mais velho que Freud e que começou com ele uma terapia baseada em palavras e que pretendia uma catarse sob o processo hipnótico, deixou tudo nas mãos do seu jovem protegido por causa da famosa paciente que, em relatos científicos, é chamada Anna O. Na verdade, Bertha Pappenheim. Foi ela quem inventou para o método catártico sob hipnose que Breuer e Freud usaram nos primórdios da Psicanálise, o nome de “Limpeza de chaminé” e para a análise o de “Talking Cure – Terapia da Palavra”. No fim do seu tratamento com o Dr. Breuer e, já curada dos seus sintomas iniciais, Anna O. apresenta sinais de uma gravidez nervosa (pseudociese) e afirma que espera um filho do Dr.Breuer. Este ficou desnorteado, largou sua rendosa clínica e, com certeza, para manter o seu casamento com a bela e afetuosa Mathilde, partiu para Veneza para uma segunda lua de mel. Nove meses depois, nasce sua filha Dora.

 

A ESCOLA KLEINIANA

10/01/2014 11:40

                        A figura feminina mais importante da Psicanálise, provavelmente é Melanie Klein. As suas idéias inspiraram, a partir de Londres, um movimento psicanalítico chamado Escola Kleiniana que se consolidou nos anos quarenta e alcançaram um apogeu nas décadas de cinqüenta e sessenta. Este movimento unificou um corpo teórico e técnico que ficou claramente individualizado de outros segmentos da Psicanálise contemporânea.

 

                        Melanie Klein nasceu na Áustria em 1880, filha de uma família judaica. Seu pai foi um talmudista que tardiamente formou-se em Medicina. Ela também quis estudar Medicina, mas um noivado nos moldes tradicionais já aos dezessete anos com Arthur Klein a impediu de seguir seu propósito. Casou-se aos vinte e um anos e logo teve três filhos. Durante a Primeira Guerra Mundial passou avidamente a ler os trabalhos de Freud e nunca mais diminuiu sua devoção ao mestre da Psicanálise, mas não teve contato pessoal significativo com Freud.

 

                        Melanie Klein iniciou sua análise pessoal com Sandor Ferenczi, húngaro, figura muito próxima a Freud, membro do restrito círculo da Sociedade Psicanalítica de Viena. Em 1921, muda-se para Berlim e inicia a sua segunda experiência analítica com Abraham, outra figura muito próxima a Freud e teórico respeitado da Psicanálise. Mas Abraham morre prematuramente. Ernest Jones, inglês, autor de uma famosa biografia de Freud a convence a ir morar em Londres onde, por seu talento, vai tornar-se figura exponencial da Psicanálise e onde fica até morrer, em 1960. Melanie Klein sempre foi uma figura muito polêmica na Psicanálise e neste quesito só perde para o francês Jacques Lacan. Ela teve apaixonados colaboradores, seguidores, ou inflamados críticos e opositores. Lacan, volta e meia, nos seus seminários, desancava Melanie Klein e seus conceitos mais próprios.

 

                        Ela teve três grandes enfrentamentos ao longo de sua carreira científica. O primeiro, em 1927, então aos quarenta e sete anos. E logo com quem? Com Anna Freud, a filha do homem. A polêmica foi centrada nas técnicas de análise infantil, onde as duas pontificavam. O segundo, em 1934, quando Glover, um importante analista da Sociedade Britânica de Psicanálise, propôs a expulsão de Klein e de seu grupo da Sociedade, acusando-os de afastar-se dos “princípios básicos da Psicanálise”, vale dizer, do freudismo. E finalmente, já nos últimos anos de sua vida, quando propôs a sua teoria de uma inveja primária na pessoa humana, o que implica uma base constitucional para a agressividade humana. Esta teoria provocou uma cisão definitiva com vários membros de sua escola psicanalítica que sempre a apoiaram. Paula Heimann, até aí a sua mais notável colaboradora, separou-se do grupo. Ela teve, no seu embate com Anna Freud, um forte apoio de seus colegas, mas, provavelmente esta divergência fez com que Freud nunca aceitasse ou apoiasse a sua obra, apesar dela se proclamar sempre fiel discípula e continuadora de suas idéias.

 

                        O grande golpe em sua vida, com certeza, deve ter sido o que aconteceu na grande disputa interna da Sociedade Britânica de Psicanálise em 1934, quando sua filha Melitta apoiou o grupo de Glover contra sua mãe. Este lado perdeu a disputa, afinal ela não foi expulsa da sociedade. Inconformada, sua filha mudou-se definitivamente para os Estados Unidos e, ao que tudo indica, ficou inimiga de Melanie Klein para sempre.

 

                        A leitura de seus textos são sempre impactantes. Suas descrições clínicas, sempre recheadas de observações perspicazes são, quase sempre, desenvolvimentos dramáticos refletindo o mundo de fantasias e vivências íntimas angustiosas que constituem a base do funcionamento mental de seus pacientes, adultos e crianças. Em quase todos os seus artigos encontramos idéias inovadoras, apesar dela sempre enfatizar que suas idéias têm uma continuidade direta com as idéias de Sigmund Freud. Mas, muitos autores opinam (e acho que com razão) que há uma ruptura teórica entre Freud e Klein. Estes autores afirmam que seus trabalhos formam uma nova teoria do funcionamento mental e do desenvolvimento psíquico.

 

                        A idéia do conflito freudiano sendo uma luta entre pulsão e defesas a esta pulsão é substituída pela de conflito entre desejos de amor e desejos de ódio. Freud é nitidamente muito mais biológico do que Klein. A emocionalidade seria, para ela, a base do funcionamento psíquico e as fantasias inconscientes (veremos depois a importância deste conceito) em seu desenvolvimento dramático é o que dá significação ao processo mental.

 

                        Melanie Klein foi instada pelo seu primeiro analista, o húngaro Sandor Ferenczi, a se introduzir na análise de crianças. Aceitando o conselho de Ferenczi ela cria as técnicas psicanalíticas do jogo infantil. Para analisar crianças ela aceita seus jogos, suas dramatizações, as expressões verbais e não verbais, sonhos, como material significativo e, através deles, explora, sistematicamente, as fantasias conscientes e, principalmente as inconscientes, que estão por trás destas atividades. Aceita até pets nas sessões. Foi uma proposta super inovadora em relação aos antecedentes da análise infantil até esta época. O seu objetivo é explorar o inconsciente infantil e interpretar as fantasias, sentimentos, angústias e experiências expressadas nos jogos durante as sessões de análise. E se houver inibições da criança nos jogos, explorar as causas destas inibições. 

MATÉRIA E ESPÍRITO III

10/01/2014 11:39

                        Pauli, com quem Jung viria trocar várias idéias, declara o seguinte: “a ciência das partículas elementares, devido à complementaridade básica das situações, enfrenta a impossibilidade de eliminar os efeitos da intervenção do observador e, deve, portanto, abandonar, em princípio, qualquer compreensão objetiva dos fenômenos físicos. Onde a física clássica ainda vê o determinismo das leis causais da natureza nós, agora, só buscamos leis estatísticas de probabilidades imediatas.” Em outras palavras, na física das partículas elementares, o observador interfere na experiência de um modo que não pode ser exatamente calculado e que, portanto, não se pode, também, eliminar.

 

                        Um cientista deverá, então, dizer: de acordo com as probabilidades estatísticas, tal fenômeno deve acontecer. Mas, é claro, que pode, estatisticamente, também não acontecer, ou acontecer o seu inverso. Estas conclusões dos cientistas quânticos levou Einstein a proferir talvez a sua mais famosa frase: “Não acredito que o Velho Jacob jogue dados”. Com o Velho Jacob, o formulador da relatividade estava se referindo a Deus.

 

                        O que a Física Quântica fez foi desiludir o Homem quanto ao conhecimento das causas íntimas das coisas materiais. Coincide com a opinião de Jung, que afirma: “-Explicar a mente consciente pelo cérebro, isto é, pela matéria, é tão lógico e tão arbitrário como explicar a matéria no interior dos átomos como emanações de um espírito criador”.

 

                        Referindo-se a influência do experimentador, vale dizer, do Homem no resultado das experiências científicas, Pauli diz o seguinte: “- Não existem razões, a priori, para rejeitar a possibilidade de que as condições psicológicas totais do observador (tanto consciente quanto inconsciente) estarem envolvidas nas experiências. Devemos, então, considerar estas possibilidades como um problema ainda inexplicado e não solucionado”.

                        A idéia da Física Quântica da complementaridade é igualmente aplicada por Jung na relação entre mente inconsciente e   mente  consciente.   Cada novo conteúdo que vem do inconsciente é alterado na sua natureza básica ao ser parcialmente integrado na mente consciente do sujeito. Assim, o inconsciente só pode ser aproximadamente e indiretamente descrito. O relacionamento do consciente e do inconsciente forma um par de complementos, mas de natureza contrária. O que existe realmente no inconsciente em si não o saberemos jamais. Assim como jamais saberemos o que há na matéria em si. Quando um conteúdo passa do inconsciente para o consciente, ele é alterado qualitativamente para ser integrado á mente consciente.

 

                        Jung acentua que o inconsciente aparece como um conjunto de todos os conteúdos psíquicos no estado nascente. Nossas representações conscientes são ordenadas e organizadas a partir do inconsciente. Vejamos alguns exemplos. O matemático alemão do Século XVIII, Karl Friedrich Gauss, gênio que morreu cedo, nos mostra um exemplo desta organização inconsciente de idéias. Declarou ter descoberto as regras da sua teoria dos números – “não devido a pesquisas exaustivas, mas por assim dizer, pela graça divina. O enigma resolveu-se por ele mesmo, como um raio, sem que eu mesmo pudesse dizer ou mostrar a conexão entre o que eu sabia anteriormente, os elementos utilizados na minha última experiência e aquilo que produziu o sucesso final”.

 

                        O cientista francês Henri Poincaré tem uma descrição ainda mais direta. Diz que, numa noite insone, assistiu as suas fórmulas matemáticas praticamente vindo chocar-se contra ele, até que algumas delas conseguiram uma combinação mais estável. Era, justamente, a resposta para suas questões. O químico alemão Kekulé, que descobriu a complexa fórmula de integração dos carbonos na fórmula da substância benzeno – que é importantíssima na Química Orgânica, confessou que só chegou à fórmula, apesar de ter se esforçado ao máximo, quando numa noite sonhou com uma estrutura brilhante, solta no ar, que era exatamente a forma com que se combinam os átomos de carbono na molécula do benzeno.

 

                        São casos do trabalho do nosso inconsciente tornando a sua atividade parcialmente perceptível à consciência, mas sem perder o seu caráter peculiar. Nestes momentos, podemos nos dar conta da diferença entre estes dois registros – o inconsciente e o consciente. Mas, não é preciso ser matemático ou cientista notável. Qualquer um de nós já teve a vivência de ter a solução de um problema na vida aparecendo, nitidamente, em sua consciência quando não estava pensando naquele problema. Interrompendo o nosso pensamento mais importante e, como num flash de filme ou da televisão, irrompe claro na tela de nossa consciência, a solução. E, aí, dizemos: “- É isso mesmo. É isso que eu vou fazer”.

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