A FELICIDADE NÃO É UM BEM DA CULTURA (IV)
Muito mais destrutiva e cruenta é a circuncisão feminina que, nada mais é, do que a clitoridectomia praticada em milhões e milhões de meninas dos 4 aos 10 anos de idade. A Dra. Nawal Saadawi, uma médica ginecologista, publicou vários livros relatando a prática em seu país, o Egito (inclusive nela própria). Quem leva as meninas para o ato bárbaro? A mãe, que se vê obrigada a cumprir este ritual. Justamente a mãe que já fora clitoridectomizada e, portanto, sabe o horror que isto é. Por que se sente obrigada a fazer em sua filha querida o ato bárbaro? Porque seu Superego cultural lhe impõe de dentro e exige, absolutamente e sem contestação, a prática. Se não o fizer será tomada por uma insuportável culpa cultural. A Dra. Nawal Saadawi publicou um livro clássico sobre o assunto em 1982, “A face oculta de Eva”.
Os pais, e até os médicos, justificam a clitoridectomia como sendo uma medida higiênica e preventiva, imposta pela moral e pela tradição. Destinada a preservar a mulher árabe da concupiscência e da perda da virgindade (honra) antes do casamento. No mercado do casamento de lá, as mulheres clitoridectomizadas são mais valorizadas. Insulto semelhante foi o “pé de lótus” que durou mil anos na China e só foi abolido com a revolução comunista. Mantinha o pé da menina rigidamente enfaixado, a partir dos sete anos, para que não medisse mais que quinze centímetros quando adulta. O ideal era o pé de doze centímetros (lótus de ouro). Ai da mãe que não impusesse este martírio às suas filhas. Este é um exemplo perfeito do que é o cumprimento de um mandamento superegóico, por mais estúpido que seja.
Vamos, agora, trazer as conseqüências do pensamento de um grande gênio do Século XIX, Charles Darwin em suas implicações sobre o desenvolvimento da mente humana. Só a partir do Renascimento foi sendo permitido ao Homem pesquisar cientificamente o corpo do seu semelhante. Passamos a saber, devagarzinho, que dispomos de uma máquina maravilhosa trabalhando incessantemente para nos manter vivos e atuantes. Só no Século XVII, com William Harvey, descobrimos a pequena circulação – aquela que se dá entre os pulmões e o coração direito. Foi Harvey, também, quem descobriu que as nossas veias têm válvulas que não deixam o sangue voltar. E deduziu que são justamente estas válvulas que fazem o sangue voltar para o coração, impulsionado pelos nossos músculos periféricos que espremem o sangue dentro das veias. A válvula não deixa o sangue voltar, então ele caminha em direção ao coração. Depois de Harvey e na filosofia de Descartes, o Homem passou a ver o seu corpo como uma máquina excepcional, muito bem desenhada. Por que temos pregas nas orelhas e por que elas são assimétricas? Porque elas filtram as ondas sonoras provenientes de várias direções de modos diferentes. As nuances da sombra do som dizem ao cérebro se a origem do som está acima ou abaixo, adiante ou atrás de nós. Mesmo hoje em dia, podemos nos fascinar, ainda, com descobertas da Biologia quando ficamos sabendo para que servem determinadas partes microscópicas do nosso corpo.
Foi Charles Darwin que mostrou ao Homem que mesmo os órgãos de extrema perfeição e complexidade não se originam de um ato único da providência divina, mas da evolução de organismos que se replicam ao longo de períodos de tempos imensamente longos. À medida que estes organismos se replicam, erros aleatórios de cópia às vezes acontecem. Os erros que melhoram o modelo, seja na taxa de sobrevivência ou na de reprodução, tendem a permanecer no decorrer das gerações. Os que pioram não sobrevivem. Nós somos organismos replicadores e, por isso, parecemos ter sido projetados para sobrevivermos e reproduzirmos. Darwin afirmou que a sua teoria explicava não só a complexidade do corpo mas também a da mente. – “A Psicologia assentará em um novo alicerce”, foi sua previsão no fim de “A origem das espécies”. Mas o que é que esta frase quer dizer? Que nós poderemos entender a mente humana se levarmos sempre em conta que, como as outras partes do nosso corpo, a mente também foi se adaptando durante incontáveis gerações às modificações do meio ambiente, visando à sobrevivência e reprodução. Seguindo este raciocínio poderíamos entender os sentimentos e as emoções humanas e toda a nossa parte cognitiva, como mecanismos adaptativos que evoluíram por milênios. E não estão em nós aleatoriamente, por mais estranhos e extravagantes que algumas reações humanas possam parecer. Elas são adaptações que nos fizeram sobreviver. Diz o político: “se você encontrar um jabuti numa árvore alguém o pôs ali.” Igualmente, se for encontrada uma reação na mente humana, mesmo esdrúxula, alguma vez em nossa história como espécie ela foi necessária. Se persiste é porque é mais útil que perniciosa.
Não há como questionar as descobertas da Paleontologia. O Homem evoluiu de outros seres e suas características foram elaboradas para ele superar o mundo adverso e hostil, cheio de competidores. E ele o conseguiu. Tanto isto é verdade que empolgamos todo o mundo. Não foi necessário, para a nossa sobrevivência como espécie, o “propósito” de tornar o Homem feliz e sim vencedor na luta pela sobrevivência e, também, a capacidade de transmitir estas características vencedoras a seus descendentes.