A TRANSFERÊNCIA (IV)
O indivíduo, integrado na multidão, não tem plena consciência de seus atos. Como, no hipnotizado, ficam abolidas certas faculdades mentais e podem ser levadas outras a um grau extremo de exaltação. Sob a influência da sugestão, principalmente de um líder carismático, os membros de uma massa podem cometer barbaridades, como acontece nas torcidas organizadas, nos grupos de pitbulls das baladas e, até coisas mais assustadoras, como as matanças coletivas nos pogrons na Rússia, onde os judeus eram massacrados. Os chipanzés também têm o seu equivalente ao pogron – um bando de jovens machos saem barbarizando pelas selvas, matando a esmo todos os macacos que possam, sejam chipanzés ou não.
Na raça humana há uma superestimação do líder sempre que ele se torna absoluto na posição. Em “Guerra e Paz”, de Tolstoi, o autor, com sua pena inspirada, descreve o sentimento de êxtase do membro pelo líder, no caso o de Rostov pelo Czar. –“À medida que o imperador se acercava, parecia a Rostov como um sol que irradiava raios de luz suaves e majestosos. E, agora que se sentia envolto pelo seu brilho, ele ouviu a sua voz, uma voz carinhosa, calma, majestosa e, ao mesmo tempo, tão simples. Isto se passa nos memoráveis dias (para os russos) que precederam à batalha de Austerlitz (1805), onde Napoleão bateu os austríacos e russos coligados. Com certeza, os mesmos nove décimos – segundo Tolstoi – dos homens do exército russo que estavam apaixonados pelo Czar correspondiam aos franceses vivendo fascínio idêntico pelo seu imperador. Parece que apaixonar-se pelo líder é um dos pré-requisitos para uma guerra. A ironia é que se matou tanto sob a égide do amor quanto a do ódio.
O aparecimento da alma coletiva é determinado porque o indivíduo integrado em uma multidão adquire um sentimento de potência invencível pela qual se permite ceder a instinto que antes, como indivíduo isolado, reprimia sempre. E o faz com prazer e gozo porque a multidão é anônima e, portanto, irresponsável.
Mas, a alma coletiva, na mesma velocidade que aparece, se desfaz. As multidões são instáveis em seus julgamentos e obedecem a critérios da parte mais primitiva da mente. O herói de agora pode ser o vilão em seguida. O fã que deifica o craque que fez o gol da vitória é o mesmo que o apedreja e o agride na derrota. A multidão se desfaz com as modificações do seu próprio humor. Nenhum homem suporta uma aproximação muito íntima com seu semelhante, ao menos por muito tempo e sem rancores. Quem melhor exemplificou isto foi Schopenhauer, na célebre parábola dos porcos espinhos.
-“Era um terrível dia de inverno. Os porcos espinhos de uma manada se apertavam uns contra os outros para desfrutarem do calor mútuo. Mas, ao fazê-lo desta maneira se feriram reciprocamente com seus espinhos e tiveram de separar-se. Obrigados, de novo, a juntarem-se por causa do frio, tornaram a se machucar e se distanciaram de novo. Estas alternativas de aproximação e distanciamento duraram até que lhes foi dado achar uma distância média na qual ambos os males foram minimizados.”
Todo observador realista sabe que em qualquer relação afetiva íntima de alguma duração entre duas pessoas, tipo casamento, sociedade comercial, amizade, relações parentais, relações filiais, deixam, também, um precipitado de sentimentos hostis. O mesmo fato se reproduz quando pessoas se reúnem para formar conjuntos mais amplos. Quando duas famílias se unem para um matrimônio, cada uma delas se considera a melhor e mais distinta que a outra. Cidades vizinhas sempre são rivais. Os habitantes dos dois lados de um rio nunca se acertam. Rivais vem de rivum em Latim, que significa rio. Os grupos étnicos afins se repelem reciprocamente. O inglês deprecia o escocês, o espanhol o português, judeus e árabes se aniquilam há milênios. Os tutsis e os hutus de Uganda promoveram uma matança de mais de um milhão de indivíduos.
Nada melhor para um governante ou para um rei do que um inimigo externo ou um grupo rival. Seus conselheiros sabem que ele deve ser colocado, sempre, numa posição supra-humana, de semi-deus, para que o povo, como massa plástica, o obedeça cegamente. Os incas foram mestres nisto. Nas cerimônias, o seu soberano, também denominado inca, aparecia no alto, pairando sobre a massa apinhada embaixo. Os chineses da época imperial fizeram coisa semelhante, ao instituir a “cidade proibida”.
Para Freud, muitos dos sentimentos que o homem experimenta em relação ao seu líder são transferências de sentimentos iniciais que eram direcionados ao pai que, visto pelos olhos da criança, é um gigante todo poderoso que o protege de todos os males. A situação de impotência e necessidade de proteção da infância é revivida, muitas vezes, quando um povo se confronta com adversidades naturais ou com poderosos inimigos humanos. O líder inconteste se transforma, incontinenti, no pai da Pátria e muitos aceitam de bom grado o título. Franco, por exemplo, se dizia “caudilho de Espanha pela graça de Deus”. Hitler era “o Füher” e Mussolini “o Duce”.