FAMÍLIA DO PÓS-PÍLULA

10/01/2014 11:16

                        Na Roma clássica, família é o conjunto de todas as pessoas, objetos e bens que estavam sob a autoridade de um chefe – o pater familias. A família, então, é uma estrutura de poder. O pater familias tinha poder de vida e de morte sobre todos os seus membros, inclusive com poderes para uma regulação severa dos casamentos. Esta regulação visava impedir a diminuição, ou favorecer o aumento de seu poder em alianças matrimoniais dos filhos e das filhas com seus vizinhos importantes, ou até com estrangeiros. Mesmo na família romana cristianizada, da qual a nossa seria proveniente, a posição da mulher é de dependência e sempre considerada como incapaz. Muitas nem sequer tinham nome próprio, sendo  que seus nomes eram o do pai com a terminação em a. Só nos Séculos XVI e XVII, na medida em que se consolida social e politicamente a burguesia, a linhagem começa a perder o seu lugar, sendo substituída pela família conjugal: pai, mãe, filhos e um número bem restrito de agregados, uma tia solteirona, uma cunhada solteira, um primo órfão, coisas assim.

 

                        Uma família de nossos dias poderia ser representada pelo casal de um só: um homem divorciado morando em sua casa com uma filha solteira do primeiro casamento, mas se sentindo casado com uma mulher divorciada (que também se sente casada com este homem). Mas ela mora com seus dois filhos menores de seu casamento anterior e em sua própria casa. Juntam-se nos fins de semana, nas férias, nas viagens, e são aceitos pelos amigos como sendo um casal igual aos outros casais casados e que moram juntos num mesmo lar. Em muitos casais há filhos que nascem e são criados separados por uma década, em lares diferentes ou não, e podem ser encarados psicologicamente como sendo filhos únicos.

 

                        Tivemos que abrir as nossas mentes para estas novas relações na parentalha. É perfeitamente possível uma mulher, falando com o marido, referir-se  a seus filhos, meus filhos e nossos filhos.

 

                        Com todos estes arranjos novos, a tensão milenar entre sogras e noras e sogras e genros está perdendo a importância e dando lugar à tensão entre os cônjuges e os filhos só do outro. As filhas anteriores do marido competindo e não aceitando a nova mulher de seu pai; os filhos varões defendendo a mãe, e o novo marido contrariado com o excesso de zelo e o mimo com que a mulher trata os filhos dela com o primeiro marido.

 

                        Talvez possamos entender mais facilmente estes novos conflitos se formos objetivos. Simplificando, diríamos que a boa mensagem para o entendimento universal das pessoas é: “trate as demais pessoas com a mesma bondade e tolerância com que você trata seus parentes consangüíneos”. O amor pelos seus parentes brota naturalmente – isto é uma determinação inata. Já o amor pelas demais pessoas não. Assim que ficamos sabendo que estamos relacionados à outra pessoa por laços de sangue, o componente da psicologia do parentesco dá a sua contribuição. Sentimos logo, por nossos parentes, determinado grau de solidariedade, simpatia, tolerância e confiança, acrescidos a quaisquer outros sentimentos que possamos vir a ter em relação a eles individualmente. A rede de proteção que o parentesco lhe oferece é algo que você, de certa forma, não tem de merecer, ou fazer por merecer. A boa vontade que uma pessoa sente em relação a seus parentes é proporcional à proximidade entre você e este parente na árvore genealógica.

 

                        As pessoas amam, e defendem, sobretudo os próprios filhos. Os primos se amam, também, mas não tanto quanto os irmãos, e assim sucessivamente. As famílias atuais que assiduamente possuem enteados dos dois cônjuges, apresentam suas peculiaridades. O padrasto, ou a madrasta, procurou um cônjuge e não filhos adotivos. O enteado ou a enteada é o contrapeso que veio como parte do acordo do casamento. Padrastos e madrastas têm má reputação e não é só na nossa cultura. A caracterização negativa deles é milenar e está explicitada em muitos dos contos de fada. Padrastos e madrastas, seguramente, não são mais cruéis do que qualquer outra pessoa. A paternidade é que é única entre as relações humanas na sua unilateralidade. Os pais dão e os filhos recebem. As pessoas fomos projetadas pela evolução ou por Deus para fazermos sacrifícios pelos filhos mas não por qualquer pessoa. E isto inclui, é claro, o filho do cônjuge. E o pior é que as crianças também foram projetadas para requerer todos estes sacrifícios dos adultos incumbidos de cuidar delas o que as podem tornar francamente incômodas para outras pessoas que não seus pais ou parentes muito próximos.

 

                        A indiferença, ou até mesmo o antagonismo de padrastos e madrastas aos enteados é, simplesmente, a reação típica de um ser humano a outro ser humano não consangüíneo. A infinita bondade de um pai ou de uma mãe biológica é que é uma reação especial.

 


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