JOÃO E MARIA

10/01/2014 10:41

                        No início da aula é lido o conto folclórico de fada “João e Maria”. Este, como todos os escritos em linguagem simbólica, expressa, principalmente pelas ações, as coisas que se passam na mente infantil. João e Maria mostram uma ansiedade infantil dominante: a fantasia que os pais podem vir a abandonar ou deixar de cuidar, por desamor, a criança ou deixá-la a mingua. Imaginemos um bebê que acorde faminto e molhado sozinho, no escuro. Apesar de por “a boca no mundo”, tenha ficado um século (no seu tempo interno) até que seja atendido pela mãe. Ele, apesar de ainda não estar pronto para a representação verbal de sua situação, internamente experimenta sentimentos na forma de medo de abandono e rejeição e vive uma intensa ameaça de vir a morrer de fome.

 

                        Projetando estas ansiedades e fantasias no mundo externo, João e Maria ficam convencidos de que os pais realmente planejam abandoná-los, levando-os para fora do lar e deixá-los por conta própria na floresta. No conto, a mãe foi transformada na perversa madrasta dos contos infantis. Este é um mecanismo também básico. A criança não consegue vivenciar um objeto com partes boas e más ao mesmo tempo. Assim, tendem a cindir o objeto em dois objetos distintos. Um, totalmente mau, e o outro totalmente bom. Os contos infantis mostram muito bem isso. A mãe, capaz do amor oblativo e a madrasta feita de rancor, sempre disposta a prejudicar a criança. A psicanalista inglesa Melanie Klein mostra esta divisão na mente infantil e nos fala de: seio bom e seio mau, para poder aceitar as duas possibilidades – a mãe que gratifica e a mãe que frustra. Devemos notar, também, que esta fantasia de abandono não é uma impossibilidade. De vez em quando, vê-se nos jornais que um bebê foi encontrado numa lixeira, outro aparece em sacos de plástico na beira do rio, etc. Nos casos extremos, temos o infanticídio.                                                                                                      

 

                           A mãe é a fonte inicial de toda a alimentação dos filhos na raça humana (nós pertencemos à ordem dos mamíferos). E, se por qualquer fantasia infantil ou por ter chegado mesmo à hora do desmame, a mãe não encarar de bom brado às fortíssimas solicitações orais da criança, isto vai levar a mente dela a supor que a mãe se tornou egoísta, rejeitadora e, pior, sem mais amor para dar. É aí que a mãe vira madrasta.

 

                        No conto, a dupla está crescendo e vai ter de aprender a enfrentar o mundo sem o colo da mãe. João e Maria são levados, contra a sua vontade, para a floresta.  Espertamente conseguem voltar usando o estratagema das pedrinhas mas à volta deles para o lar não muda nada. A madrasta fica mais esperta e fecha a porta. João, não podendo pegar as pedrinhas esfarela o pão mas os pássaros comem as migalhas e impedem a volta ao lar. Frustrados, João e Maria dão, agora, rédeas plenas a uma regressão oral no seu imaginário: uma casa de biscoitos de gengibre. É uma imagem formidável, inesquecível mesmo, quando ouvimos o conto na infância. Nos sonhos, assim como nas fantasias, uma casa geralmente representa o próprio corpo ou a totalidade do sujeito “self”. Mas aqui, neste conto, podemos identificar que o principal dele é a experiência interna diretamente ligada à mãe, tanto que o pai permanece como uma figura apagada. No princípio da nossa existência a mãe é a toda importante, tanto no aspecto benigno, quanto nos ameaçadores. A casa de biscoitos que pode ser devorada é o símbolo da mãe que alimenta a criança com algo do seu corpo. A casinha é o seio materno na simbologia do conto e é perfeitamente adequada à compreensão direta do inconsciente infantil. João e Maria comem extasiados o que a mãe boa imaginada lhes oferece: o leite docinho do peito. Logo depois, aparece a figura ambivalente da bruxa que, fingindo gentileza, lhes dá mais comida e oferece duas caminhas macias e limpas. João e Maria pensaram estar no céu. É a imagem de uma criança frustrada que fantasia mamar até ser fartar e depois dormir de satisfação. Logo depois, a bruxa mostra os seus terríveis aspectos canibalísticos. A bruxa é a personificação no conto dos aspectos destrutivos da oralidade desenfreada. É, também, a projeção da oralidade de João e de Maria que antes estavam dispostos a comer toda a casinha.

 

                        A partir da explicitação das intenções malévolas da bruxa, as crianças vão passar por um “upgrade”. Vão superar a sua oralidade primitiva, vão se unir, ficar espertas, aprender a lidar com a realidade e, usando estratagemas e astúcia, superar os perigos e acabar matando a bruxa. Derrotar a bruxa voraz que os quer comer é, também, triunfar sobre a própria voracidade primitiva e seguir em frente na vida. Acham jóias e pérolas na casa da bruxa e encontram o caminho de volta para sua casa. Como seu pai (a madrasta morrera) não fica rico com as jóias, isto deve significar que os dois passam a colaborar mais com os deveres e obrigações de cuidar da casa.